voz
Voz e vociferações nas redes sociais
Em 1966 Michelangelo Antonioni lança “Blow-Up”, um filme em que retrata a busca de um fotógrafo por aquilo que, quem sabe, tenha visto ao fundo de uma foto. Em 1981 Brian de Palma lhe rende uma homenagem ao gravar “Blow Out”, operando um deslocamento do registro do ver para o registro do escutar: um técnico de efeitos especiais, ao gravar sons para um filme, ouve aquilo que parece um tiro. A homenagem mostra os limites de tratarmos a voz e o olhar como homólogos: o filme de de Palma ainda precisa ser visto.
Trago essa comparação inicial porque temos a tendência, citando Lacan, de colocar voz e olhar em uma série, uma série de objetos (em paralelo a uma série outra, é verdade, com a pulsão escópica e a pulsão invocante). Se, por um lado, temos um ganho conceitual para operar, inclusive clinicamente, com a voz e o olhar, por outro esse ganho implica a necessidade de pensarmos numa conceituação propriamente psicanalítica para o que está em tela. Em outros termos, a voz, para ser um conceito em psicanálise, não deve se confundir com sua definição nos dicionários.
É só com essa preliminar que podemos abordar a voz, do ponto de vista psicanalítico, nas redes sociais. Não se trataria, portanto, de querer encontrar onde o áudio comparece numa experiência imageticamente impregnada (como temos no Facebook ou no Instagram, por exemplo). Sem esse cuidado, perder-se-ia a possibilidade de pensar como as vociferações, enquanto modo de estruturação subjetiva, encontram eco num meio em que ali onde pensamos encontrar mensagem temos, na verdade, código.
Luiz Eduardo de V. Moreira
Costela de Adão
No dia 07 de agosto a Lei Maria da Penha completou 12 anos e nesse mesmo dia pela manha várias noticias sobre assassinato de mulheres por seus maridos, namorados, companheiros que mataram por amor, por ciúmes…
Em algumas dessas noticias chamou minha atenção o termo esganadura.. “marcas de esganadura” como também o fato de “cairem da janela” de seus apartamentos.
Certamente que a criação da lei favorece que tenhamos acesso à notificação dos casos ainda que também saibamos que é muito grande o numero de acontecimentos que não são registrados. Medo? vergonha?… Medo e vergonha? Certamente são elementos presentes, ate porque é de se perguntar o motivo dessas mulheres que foram mortas já estarem na sua grande maioria sofrendo agressões por algum tempo e de alguma maneira não “puderam”sair dali. É uma questão complexa. Para o momento destaco aqui o elemento presente na dimensão do feminicídio. Fruto da Lei Maria da Penha, o crime do feminicídio foi definido legalmente em 2015 como assassinato de mulheres por motivos de desigualdade de gênero e tipificado como crime hediondo. O destaque é sobre a necessidade de ressaltar que a questão do crime enquanto assassinato não basta para qualificá-lo, pois a dimensão do género, a dimensão do ataque à mulher é o ponto. Estamos no século XXI, e a vulnerabilidade da mulher está mais presente, ou tão presente quanto na Idade Média! Digo isso pois recentemente trabalhando o texto de Michel Poizat – “A Voz do Diabo”, encontramos dados bastante significativos do lugar de ameaça que a mulher representa e me parece possível dizer, que esse lugar de ameaça é desde sempre.
Esse autor tem vários estudos sobre a voz e se vale da psicanálise para situar a dimensão de gozo que a voz enquanto um objeto pulsional carrega. A Voz como objeto implica em toma-lo na referencia de um objeto que não é apreendido em sua completude. Um objeto que vem mostrar a impossibilidade de alcançar um gozo pleno por mostrar a natureza de um encontro marcado pela falta. O que evitamos, refutamos é exatamente essa dimensão de falta uma vez que o caráter de inadaptação, de enigma do desejo humano é fonte de angustia e questionamento constante.
Poizat indaga sobre o por quê do homem precisar cantar, de não se contentar em falar. Destaca como ao longo da historia da humanidade a musica se fez presente e entende os instrumentos enquanto prolongamentos da voz. Temos assim por essa via a experiência de um transbordamento, de um excesso de gozo que pela musica, pelo canto se experimenta. Tal transbordamento aproxima a experiência humana do divino, do anjo, do sagrado, mas também do profano, da transgressão, do pecado. Portanto é pela religião que vamos encontrar toda espécie de legislação sobre o gozo. Quanto se deve gozar sem se perder nesse gozo? Nesse trabalho o autor pesquisa essa dimensão tanto na igreja cristã quanto no islã.
Para a igreja católica na sua constituição mesma o canto foi permitido, em meio a muitas discussões e estratégias para definir as condições para essa permissão. Gozar era admitido desde que fosse para glorificar a Deus, mas não muito! Introduz-se assim uma dialética entre interdito e transgressão. E nesse contexto o canto surge como permitido no lugar da embriagues do vinho e ao ser permitido que se embriague pelo canto … e ao se embriagar, o excesso é de alguma forma incluído e tolerado. “Gozo de alguma coisa que vem preencher uma falta, encher um vazio”. Ao recusar o vinho, a droga, é o Espírito, isto é Deus, e um Deus que se cante que ele designa como o bom objeto. O objeto mais adequado para exercer a função de tamponar uma falta.
Nessa perspectiva que ele afirma que o diabo entrou pela porta da frente da igreja! Com seus hinos de louvor que entusiasmam os fiéis se valendo do gozo do canto e da musica em nome de Deus, mas gozam …
Importa notar que a mulher acompanha esse paradoxo. A voz da mulher, a voz da diva, é a voz do anjo, do sublime, do belo, de êxtase, que preenche a falta que nos habita trazendo o espírito divino para nosso conforto, suspendendo o sentimento de abandono e desamparo. Por outro lado a voz da mulher vem como aquela que é lasciva, fala mole e sedutora que embriaga e captura o homem, e o domina, e o leva aos extremos e o distancia de Deus e vocês já imaginam para onde isso vai… Sim ao inferno, ao diabólico que escraviza o homem a gozar mais e mais e mais…
Um amalgama se deu entre os cultos profanos e as festividades populares tais como o teatro . Esse amalgama talvez se deva ao fato que os cultos e festividades profanas pagãs funcionam a maior parte do tempo sob o que o autor chama de um tripé do gozo : mulher – vinho – musica. Baseado no transbordamento, na perda de controle de si promovido pela embriaguês nestes três registros sistematicamente associados.
Impressionante como a mulher entra nesse “tripé do gozo”, do gozo diabólico. A voz da mulher é o perigo, a presença da mulher evoca o perigo ao homem. Esse amalgama que coloca a mulher desde a Criação na perspectiva de fazer faltar ao homem desde a sua costela…
Em tempos de esganadura, lembro com Luiz Melodia na musica “Fadas”, especialmente na voz de Elza Soares a contrapartida:
As ilusões fartas
Da fada com varinha virei condão
Rabo de pipa, olho de vidro
Pra suportar uma costela de Adão
Cristina Helena Guimarães